ENTREVISTA
João Bosco Pedruzzi
“Descobri que existia a ‘máfia da hemodiálise’ no estado.”
É provável que a maioria dos pacientes submetidos ao tratamento de hemodiálise em Colatina sequer tenha ideia da saga protagonizada por esse engenheiro eletricista, em meados da década de 1980, para convencer as autoridades de que a cidade, assim como Vitória e Cachoeiro de Itapemirim, à época já com suas unidades funcionando, precisava urgentemente entrar para o seleto grupo de municípios aptos a oferecer esse serviço médico.
A experiência vivida por João Bosco Pedruzzi teve como ponto de partida o acometimento da diabetes pelo seu pai, Antônio Pedruzzi, e de imediato levou o engenheiro a abrir mão de seus estudos e de sua carreira em nome de uma luta épica, na tentativa de implantar o mais rapidamente possível uma unidade de hemodiálise em Colatina, quando enfrentou desde políticos inescrupulosos até médicos e empresários da área da saúde envolvidos com o que ficou conhecido à época como a “máfia da hemodiálise”.
Abandonar o curso de mestrado em telemática, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), interrompido quando faltava pouco mais de um ano para o seu término, e desistir do doutorado na Alemanha, que seria iniciado tão logo terminasse o curso na UNICAMP, foi o menos traumático para Pedruzzi.
Natural de Marilândia, 66, João é casado há 28 anos com a comerciária Adriana Pedruzzi, e pai adotivo da bióloga Adrienne Carla e do médico Antônio Eugênio.
Formado em engenharia elétrica pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e em administração de empresas pela Faculdade Castelo Branco (FCB), onde também leciona estatística e cálculo há 30 anos, ele recebeu O Povo Capixaba para contar a história de como o amor incondicional pelo pai e o testemunho do sofrimento de pessoas com problemas renais crônicos quase levaram esse pacato engenheiro a cometer loucuras.
O Povo Capixaba – Colatina tem várias unidades de tratamento de hemodiálise à disposição do SUS, que atendem não só à população do município, mas a toda região noroeste do estado, além de cidades do leste de Minas Gerais e sul da Bahia. No entanto, nem sempre foi assim. Há quase 40 anos, o senhor protagonizou uma verdadeira batalha para que o município também tivesse a sua unidade de tratamento da hemodiálise. Como se deu isso?
João B. Pedruzzi – Em 1985, eu e minha família descobrimos que papai, a quem eu era muito ligado, sofria de diabetes e que a doença já estava em estágio bastante adiantado. Na época, eu estava em Campinas (SP) fazendo mestrado na UNICAMP, e logo depois que terminasse iria para a Alemanha começar o doutorado. Após o diagnóstico, os médicos recomendaram que papai fosse submetido à diálise, um tratamento invasivo e demorado, até então só disponível em Vitória. Atendendo aos apelos dos meus irmãos, éramos em oito, e, claro, à minha consciência e ao meu coração, resolvi largar tudo e me dedicar integralmente a acompanhar papai em seu tratamento. A partir daí, começou a nossa verdadeira via crucis.
O Povo Capixaba – Por quê?
João B. Pedruzzi – Porque a diálise começava às sete da manhã da segunda-feira, no hospital da AFPES (Associação dos Funcionários Públicos do Espírito Santo), em Vitória, e ia até às sete da manhã da terça-feira. Eu e meus irmãos nos cotizamos e compramos um carro, na época, um Gol, usado, e eu saía com papai de Colatina às cinco da manhã e chegava de volta à tarde do dia seguinte, numa viagem de quase seis horas, ida e volta, que só o deixava mais debilitado. Na quarta-feira, começava tudo de novo; na sexta, idem. Só tínhamos o domingo para descanso. Isso durou mais ou menos um ano e meio, e eu lembro que, além de papai, eu passei a levar e trazer outros pacientes na mesma situação, que moravam em Colatina e região. Testemunhar quase que diariamente todo o sofrimento dessas pessoas foi o que me levou a reivindicar às autoridades uma unidade de tratamento de hemodiálise para Colatina. Mas, no nosso caso em particular, até que isso se tornasse realidade, pensamos em mudar para Vitória, mas desistimos, pois era muito complicada e onerosa essa mudança. A situação ficou um pouco mais amena quando ele passou a fazer a hemodiálise, procedimento realizado três vez por semana, das sete às onze, aproximadamente, nas segundas, quartas e sextas. Além disso, eu o levava a Belo Horizonte, de trem, para fazer tratamento nos olhos, a laser, no Instituto Hilton Rocha. Foram umas 5 aplicações de laser.
O Povo Capixaba – Quando e como ocorreu a reivindicação?
João B. Pedruzzi – Em maio de 1986, quando resolvi fazer um abaixo-assinado e enviar ao então ministro da Previdência e Assistência Social, Raphael de Almeida Magalhães. O problema, para minha surpresa, é que ninguém da classe médica e política quis assinar o documento, com exceção de um deputado, Ozéas Ximenes. Sem o abaixo-assinado, decidi mandar uma carta ao ministro mostrando que a região norte do estado, que contava então com 29 municípios e uma população de quase um milhão de habitantes, não podia prescindir de uma unidade de tratamento de hemodiálise. Pelo levantamento que fiz na época, havia cerca de cem doentes renais crônicos no norte do estado que dependiam da hemodiálise. A resposta do ministro foi positiva, e logo em seguida o projeto começou a ser desenvolvido pelo IESP (Instituto Estadual de Saúde Pública), na época, o mantenedor do Hospital Silvio Avidos, onde ficaria a unidade de tratamento.
O Povo Capixaba – Por que médicos e políticos se recusaram a participar do abaixo-assinado?
João B. Pedruzzi – A maioria para não bater de frente com o corporativismo que existia entre muitos médicos e empresários da área da saúde, que não tinham interesse em que o tratamento da hemodiálise saísse do setor privado. Foi aí que descobri que existia a ‘máfia da hemodiálise’ no estado. Inclusive, fizeram um abaixo-assinado com a assinatura de 35 médicos de Colatina tentando impedir a instalação do centro de tratamento no Hospital Silvio Avidos.
O Povo Capixaba – Quais as justificativas que esses profissionais apresentaram para tentar impedir a instalação da unidade de tratamento?
João B. Pedruzzi – Oficialmente, alegavam não existir uma infraestrutura adequada para a instalação da unidade, como banco de sangue e UTI, por exemplo. Mas, na verdade, o grupo que gerenciava o tratamento da hemodiálise em Vitória não queria perder a receita correspondente àqueles cem pacientes.
“A ideia era sequestrá-lo e exigir a presença da imprensa.” |
O Povo Capixaba – Foi a partir daí que o senhor resolveu adotar uma estratégia, digamos, menos formal para conseguir o seu objetivo?
João B. Pedruzzi – Sim, porque além da má vontade de boa parte da classe médica em colaborar, constatei igualmente que os políticos tampouco iriam abraçar a causa, ou pelo menos a maior parte deles.
O Povo Capixaba – Na época, a imprensa, tanto a local quanto a estadual, deu visibilidade à sua reivindicação, mostrando sua luta para que Colatina tivesse, também, seu centro de hemodiálise. No entanto, há estratégias que o senhor arquitetou, e que quase foram postas em prática, que não viraram notícia...
João B. Pedruzzi – É verdade. O desespero foi tomando conta de mim na medida em que eu via papai definhar e, ao mesmo tempo, percebia haver uma força com interesses escusos tentando impedir a realização de um projeto que iria beneficiar, potencialmente, centenas de milhares de pessoas. Na época, a imprensa divulgou a ameaça que fiz em realizar uma greve de fome em frente ao Palácio Anchieta, caso o governador Max Mauro não me recebesse. Não cheguei a fazer a greve porque ele fez com que o projeto caminhasse mais um pouco para um desfecho satisfatório. Alegria que durou pouco, já que forças ocultas insistiam em sabotar a chegada da unidade de tratamento em Colatina.
O Povo Capixaba – Como assim?
João B. Pedruzzi – A unidade de tratamento do Hospital Silvio Avidos já estava pronta, com as máquinas de hemodiálise, inclusive, mas o técnico do antigo INAMPS não aparecia para checar se estava tudo ok e liberar a inauguração. Nesse meio tempo, jogaram um pedregulho no telhado da unidade, literalmente, chuva de granito (risos), causando goteira sobre os equipamentos. Além disso, alguns médicos, favoráveis ao projeto, receberam ameaças anônimas de morte.
O Povo Capixaba – E o que a imprensa, na época, não divulgou?
João B. Pedruzzi – O que não ficou sabendo (risos). Antes é preciso lembrar que naqueles quase dois anos em que briguei para a concretização da instalação em Colatina de um centro de hemodiálise, fiz de tudo, pelas vias normais, para ser bem-sucedido no meu objetivo. Tentei um abaixo-assinado, mandei carta para o ministro da Previdência e Assistência Social e para o governador do estado, fiz discurso da tribuna livre da Câmara de Vereadores de Colatina, conversei pessoalmente com vinte e nove dos trinta deputados estaduais, com o secretário de Saúde... Ah, sim, e participei do programa de entrevistas Jornal do Povo, na antiga TV Manchete de Vitória, com o jornalista Oswaldo Oleari. Lembro que, nesse dia, os entrevistados eram o Nilton Baiano, à época superintendente do INAMPS no estado, e o Douglas Puppin, ambos médicos. O assunto não tinha nada a ver com minha reivindicação, mas o Oswaldo me colocou no ar junto deles e eu acabei roubando a cena quando esculhambei com o Milton Baiano ao vivo, pela sua enrolação em dar andamento no projeto. Já bastante desgastado com essa luta, resolvi apelar.
O Povo Capixaba – Como?
João B. Pedruzzi – Arquitetando o sequestro do então presidente da Assembleia Legislativa. De tanto ir conversar com deputados e assistir às sessões, comecei a observar que não seria difícil sair da plateia e abordar o presidente. A ideia era rendê-lo e exigir a presença da imprensa. Fiquei semanas analisando em detalhes todas as possibilidades de ação. O problema é que não dava para fazer isso sem ajuda de pelo menos um parceiro. Aí, conversei com meus irmãos, que, obviamente, recusaram o convite, além de me considerarem louco. Depois, consultei um cunhado, que igualmente negou participar, mas me deu a ideia da greve de fome, o que também acabou não acontecendo porque o serviço de instalação acabou sendo feito antes.
O Povo Capixaba – Para terminar, algum arrependimento?
João B. Pedruzzi – Absolutamente nenhum. Fiz e faria tudo de novo se fosse preciso. Aprendi que se o povo quer alguma coisa, tem que saber que não será fácil conseguir apenas acessando as vias normais de reivindicação. É preciso encarar interesses mesquinhos de grupos capitalistas, o pouco caso e a inércia das autoridades e todo um sistema estabelecido para que os interesses da população fiquem em segundo plano. Valeu a briga. Ainda que tenha perdido meu pai precocemente - ele chegou a utilizar os serviços de hemodiálise do Hospital Silvio Avidos por oito meses, vindo a falecer em Junho de 1988 - hoje, centenas de doentes renais crônicos não precisam se deslocar por distâncias tão grandes para fazer o tratamento de hemodiálise.
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